Dharma: a pedra angular dos textos sagrados índicos

Esse texto foi escrito a pedido da Professora Nelza Mara Pallú, Professora Doutora em Letras na UFPR, para compor seu trabalho de literatura clássica, que futuramente será publicado em livro. A professora Pallú, ao realizar uma viagem acadêmica-cultural à Índia para selar um acordo internacional científico entre a Universidade UNIOESTE-MCR, Brasil e a GLA University – Mathura-India, se propôs a traduzir o clássico hindu sagrado “Thirukkural”. Assim nasceu o Projeto Internacional denominado “Thirukkural em Português”, que será traduzido e publicado em um livro trilíngue: Tamil, Inglês e Português.

Dharma na Bhagavad-gita e demais textos sagrados Índicos.

Dharma é um conceito encontrado na maioria dos textos sagrados da Índia e de outras partes do mundo. Aqui iremos entender o que é o dharma, como ele se apresenta na Bhagavad-gita, porque ele está aparentemente ausente do Tirukkuṟaḷ , como ele se encaixa nos famosos quatro objetivos da vida humana (purusharthas), sua ligação com o conceito do carma e a lei do carma, sua posição como a base de qualquer caminho religioso e seu aspecto último como a expressão da espiritualidade pura, ou yoga.

Dharma é difícil de traduzir em uma única palavra, mas em duas fica mais fácil: dever e propósito. Dharma define o melhor de você, não somente de acordo com quem você é, mas também tendo em conta o momento e situação na qual se encontra. Dharma representa sua melhor versão, levando-o a agir da melhor forma possível diante do que a vida lhe apresenta neste momento. Se o propósito dos textos sagrados é elevar a cultura e estimular o melhor de nós, não é à toa que o dharma esteja tão firmemente presente neles.

A Bhagavad-gita é considerada por muitos como a mais importante obra religiosa da Índia. Nela, dharma é peça chave, sendo literalmente a primeira palavra falada e presente de começo ao fim do texto. O verso 3.35, por exemplo, usa a palavra dharma quatro vezes. Significativamente, Krishna explica que Sua descida (avatar) ao mundo tem por propósito reestabelecer o dharma e eliminar o adharma, que é a ação contrária ao dharma. Se fosse para resumir toda a mensagem da Bhagavad-gita em poucas palavras, poderíamos dizer que é “pratique seu dharma como uma oferenda devotada a Deus”.

O Tirukkuṟaḷ, alguns especulam, propositalmente evita a palavra dharma, em silenciosa objeção à sua natureza fluída, que se ajusta de acordo com a pessoa e sua situação, preferindo o uso do termo aram, traduzido como justiça. Em sua definição, aram é um termo absoluto, válido para todos e não sujeito a interpretações. Porém, a definição de aram contida no verso 34, “A justiça nada mais é do que a ausência de malícia, ganância, raiva e palavras amargas”, representa apenas uma parte do conceito do dharma.

Devemos lembrar que no contexto social da Índia dos últimos milênios, o sistema opressivo das castas era falsamente fundamentado no conceito do dharma. Ou seja, uma pessoa nascida em certa família tinha por obrigação ter a mesma natureza que seus pais. Na Bhagavad-gita, Krishna anula este conceito preconceituoso, ao explicar cada varna de acordo com a natureza psicofísica indivídual, e nunca pela natureza de seus pais.

Ao proclamar a importância de aram, o Tirukkuṟaḷ está seguindo o mesmo caminho dos grandes textos sagrados do mundo inteiro, estimulando as pessoas a serem o melhor de si mesmas. Eu argumentaria que o conceito do dharma é superior ao conceito de aram, ou mesmo ao conceito de moralidade e bom comportamento da Bíblia, entre outros textos, justamente por enfatizar a natureza fluída e complexa da vida.

Simplesmente eliminar “malícia, ganância, raiva e palavras amargas” de sua vida não basta. Podemos imaginar inúmeras situações tanto na nossa vida privada como na história da humanidade onde apenas eliminar “malícia, ganância, raiva e palavras amargas” teria implicado em graves falhas, consequências desastrosas e sofrimento. Eliminar o negativo não é suficiente. Precisamos ativamente buscar entender, em qualquer circunstância, qual ação iluminada a vida nos pede. Para que eu seja a melhor versão de mim, não basta eu me policiar contra minhas más ações, mas também buscar ativamente cumprir meu dever, viver meu propósito e servir da melhor forma possível de acordo com minha natureza.

Um ponto interessante é analisar os purushartas, ou os quatro grandes objetivos da vida humana estabelecidos nos textos sagrados da Índia. Eles seguem a seguinte sequência: 1) dharma, 2) artha, 3) kama e 4) moksha.

Em primeiro lugar vem o dharma, porque entende-se que sem dharma a vida seria um desastre: o indivíduo iria agir mal e causar danos a si mesmo e os demais, não podendo obter uma posição duradoura nos demais objetivos.

O segundo é artha, desenvolvimento econômico ou riqueza. Ao cumprir o dharma e fazer o melhor de si de acordo com sua natureza, o indivíduo estará naturalmente maximizando seu potencial de riqueza. Isso não quer dizer que se tornará um milionário, mas sim que está extraindo o melhor possível da situação em que se encontra. Podemos observar que os países onde o dharma é levado mais a sério, ou seja, onde as pessoas procuram cumprir seus deveres, respeitam os demais e valorizam as leis (outra tradução para dharma), são países mais economicamente fortes. Por outro lado, países onde vigoram a corrupção, a desconsideração pelas leis e a cultura do “cada um por si” costumam ter economias mais fracas.

O terceiro objetivo é kama ou prazer sensual. Com desenvolvimento econômico fica naturalmente mais fácil curtir a vida, se divertir e ter momentos dedicados ao bom viver.

O quarto é moksha, liberação. Como pode moksha vir depois de kama? A ideia é que toda pessoa sóbria poderá perceber que os prazeres sensoriais não preenchem o coração. Enquanto estamos sofrendo, a ideia de ter prazer, conforto, etc. parece ser tudo que queremos. Infelizmente, boa parte do mundo está presa nessa ilusão. Mas ao ter acesso amplo a kama, chega-se ao momento crucial da compreensão de que que toda riqueza e conforto não bastam e precisamos algo mais. Daí surge o desejo natural pela liberação espiritual. O despertar da alma é aquilo que nos levará a moksha.

Podemos entender, portanto, que a base dos purusharthas é o dharma. Ao negligenciar o dharma, a pessoa começará a perder artha, kama e, certamente, moksha. O processo não é imediato, mas funciona dentro da escala de tempo provida pela lei do carma.

A lei do carma é totalmente centrada no conceito do dharma. De fato, carma nada mais é que uma reação ao grau dhármico da ação cometida. A lei do carma é um sistema embutido na vida material, inevitável e insuperável para os seres encarnados, que serve para treinar todo ser vivo a ser mais dhármico. Nesse sistema, vale ressaltar, só se acumula carma nas vidas onde a alma tem consciência a nível humano, similar ou superior, na qual há suficiente livre arbítrio e condição de avaliar a qualidade de suas escolhas e ações. Outros seres encarnados em vidas com consciência inferior estão apenas resgatando seus carmas acumulados em outras vidas.

As ações alinhadas com o dharma geram uma reação cármica positiva futura em termos de artha e kama. Já as contrárias ao dharma, ou seja, o adharma, geram reações cármicas negativas, na forma de sofrimento ou escassez de artha e kama.

Enquanto que a espiritualidade é opcional, o dharma não é negociável. A lei do carma não interfere em nada na vida espiritual e na busca por moksha, assim como escolher o caminho da autorrealização não irá interferir no carma. Diferente do ensinado nas tradições abraâmicas, a tradição do yoga afirma não haver consequência material negativa ou carma ruim por escolher ser ateísta ou por ter fé nessa ou naquela entidade. Suas ações motivadas por suas crenças, sim. Mas a fé, acreditar nisso ou naquilo, não tem impacto. Ninguém vai para o inferno por deixar de escolher o caminho devocional. O que existe é a perda de oportunidade e, muito provavelmente, a falta da compreensão do que seria o comportamento  ou dharma corretos. O dharma, sim, está sempre valendo, e não há como escapar das reações de seguir ou não o dharma, até que se consiga moksha.

Qualquer humano, em qualquer momento, porém, pode se dedicar à espiritualidade, buscar moksha. Essa prática espiritual é considerada a forma última do dharma e recebe o nome de sanatana dharma, ou dharma eterno. Como dharma significa a melhor ação de acordo com sua essência, a essência última e eterna é ser uma alma transcendental eterna. Por isso, buscar a vida espiritual e seguir o caminho do yoga, é praticar o “dharma néctar ou dharma eterno” (dharmamrta, na linguagem da Bhagavad-gita, verso 12.20).

São quatro os pilares que guiam a aplicação do dharma em nossa vida, em nossas ações e em nosso planejamento: tapas, saucam, daya e satyam.

Tapas é um termo complexo que carece de uma boa tradução em uma única palavra. O princípio mais importante de tapas é justamente a capacidade de escolher seguir o dharma, fazer o correto e cumprir o dever, em oposição a fazer o que é mais fácil, conveniente ou imediatamente mais prazeroso e cômodo. Outro aspecto importante de tapas é a determinação em agir, no sentido de aplicar esforço não se intimidando pelos obstáculos no cumprimento da melhor versão de si mesmo.

Saucam é pureza ou limpeza. É ser puro e limpo em termos práticos, na maneira de agir, falar e pensar. Isto inclui higiene, manter corpo e casa limpos, evitar o uso de linguajar chulo, evitar alimentos impuros como cadáveres, como também manter organização dos espaços e coisas.

Daya é compaixão. No Mahabharata, é dito que ahimsa (não-violência) é a mãe de todos os dharmas. O conceito é lindo e simples: minimizar a dor e sofrimento no mundo.

Satyam é veracidade. Em satyam, não só não mentimos, mas também evitamos a falsidade no comportamento. Evitamos viver uma vida falsa ou fazer planos baseados em um falso conceito de quem somos. Queremos falar a verdade e ver a realidade como verdadeiramente é.

Ao proclamar o poder do dharma, os textos sagrados da Índia objetivam construir uma sociedade melhor e mostrar o caminho para uma vida mais completa para quem o segue, baseado em princípios universais e compreensivelmente nobres, válidos por toda eternidade. Que todos possam, portanto, tirar proveito da vasta literatura sagrada da Índia para encontrar seu caminho e curar este mundo tão sofrido.

9 opiniões sobre “Dharma: a pedra angular dos textos sagrados índicos

  • 09/12/2023 em 19:17
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    Bom texto para iniciantes e não acadêmicos.

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  • 09/12/2023 em 20:40
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    Gratidão! De forma leve o entendimento sobre dharma se fixou em minha mente e coração ajudando no aprendizado ainda inicial sobre os textos sagrados. Parabéns.

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  • 09/12/2023 em 21:28
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    Gratidão! Texto inspirador a praticar as grandes lições: experiênciarmos a vida na forma Humana, evoluída. Um guia seguro e consistente que consolida a espiritualidade ” individual e social”.

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  • 09/12/2023 em 21:50
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    Sim Mestre!
    Excelente sua leitura sobre dharma.
    Acrescentaria apenas a definição de Acharyadeva, onde ele define também dharma como “justiça, lei sagrada, dever. Uma força cósmica divina…”
    Namastê ‍♂️

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    • 10/12/2023 em 21:41
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      Dharma é a base da vida espiritual consciente e saudável; via para expressão d’alma em manifestação objetiva.

      Por ser abrangente, inclui o conceito de Justiça; porém, não lhe sobrepõe nem supera, já que a complementa.

      Justiça é o próprio cerne do Dharma, sempre em consonância imediata com o dever exigido dentro do tempo, e de acordo com as circunstâncias.

      Assim, é de suma importância a compreensão correta a cerca da sua prática e consequências, aqui muito bem delineadas em palavras substanciais, fruto maduro do cultivo sincero e da vivência efetiva do Mestre GD no do Caminho 3T. HK!!!

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    • 11/12/2023 em 10:05
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      “Onde há Dharma, há justiça!”

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  • 11/12/2023 em 10:04
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    Texto excelente! Conteúdo necessário ao entendimento e prática! Grata, Mestre GD, por tanta dedicação ao caminho do Yoga!

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  • 12/12/2023 em 22:48
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    Amei o texto! Muito rico em informações que nos Despertam cada vez mais a Consciência Transcendental!
    Dharma= Dever, Propósito, estas duas palavras aqui encontradas, nos ajudam muito nas escolhas, no enxergar o Caminho a seguir, a cumprir e suavemente, percebemos dentro de nós, Paz Interior!
    Muita Gratidão! Hare Krishna!

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  • 14/12/2023 em 05:57
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    Gratidão Mestre. Adorei este texto ! Tanto conteúdo básico nestas linhas e com tanta clareza! Tão completo e tão essencial !! ✨✨

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